sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Patrimônio Imaterial


<><>Embora não possamos tocar ou manusear, a memória coletiva pode ser considerada um patrimônio público. Ela está na vida daqueles que não só leram sobre história, mas a vivenciaram, refletiram sobre ela e criaram sua visão a respeito do acontecido. O transporte é assim. Possivelmente muitos não saibam muitos dados a cerca da história oficial da Carris, ou dos bondes, mas para os que vivenciaram este tempo o importante é o que se guardou dele.
<><>Numa visão antropológica, patrimônio não é o monumento ou prédio em si, mas a importância que ele tem para determinado grupo social. Assim, a história do transporte não tem uma valorização sozinha, antes ela adquire significação conforme ela é incorporada à vida das pessoas que participaram de sua trajetória.
<><>O relato que coloquei na penúltima postagem, do senhor Clóvis, pode ser entendido dessa maneira. Em nenhum momento ele cita a história oficial da Carris, mas coloca, de forma cativante, como os bondes marcaram um importante período de sua vida, a infância. Para ele, o rangir das rodas, assim como outros barulhos tradicionais do veículo, ficaram para sempre marcados em suas lembranças.
<><>Clóvis fala dos reclames de bonde, velhos conhecidos dos que transitavam nos veículos. Diferente de hoje, quando as propagandas só podem estar na parte externa dos ônibus, nos elétricos elas ficavam por dentro e por fora. E eram de uma forma bem inusitada, de quisermos utilizar uma visão contemporânea de propaganda. Xarope Bromil, sabonte Limol, entre outros faziam a viagem de bonde tornar-se mais divertida e menos cansativa. A ilustração acima foi tirada daqui, página do engenheiro Werner Vana. Ótima, recomendo.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Patrimônio Material e Imaterial


<><>Muito se tem falado em patrimônio ultimamente. Isso se deve tanto à ação de órgãos governamentais, como o Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como dos profissionais que trabalham desenvolvendo uma conscientização da sociedade. Nos últimos anos vários prédios foram tombados e tornaram-se patrimônio da humanidade.
<><>No entanto, na maioria das vezes, tratamos patrimônio como algo imóvel, meio mistificado e distante de nossa realidade cotidiana. Quando vemos um prédio histórico, admiramos sua beleza, sua arquitetura, decoração, etc, mas dificilmente conseguimos nos sentir parte dele, integrantes do que ele representa. Isso se deve à distância que sentimos em relação ao que eles geralmente simbolizam.
<><>Não quero com isso desvalorizar os monumentos ou patrimônios materiais, pelo contrário, o que desejo é mostrar que o conceito de patrimônio é muito mais amplo do que geralmente imaginamos. Segundo a Unesco, existe um patrimônio imaterial, representado pelas músicas, conhecimentos, narrativas, etc. Eles são criados no cotidiano das comunidades, no modo de cada sociedade viver e transmitir seus aprendizados às futuras gerações.
<><>Inserido nesta concepção, podemos colocar o transporte. Ele, normalmente, não pode ser representado por um prédio, por um monumento, mas marca cotidianamente a vida de quem anda pela cidade. Não é a toa que o bonde é lembrado com tanta nostalgia. Ele marcou, durante um longo tempo, o dia-a-dia de Porto Alegre, o ir e vir das diversas regiões. Pela sua janela, os porto-alegrenses viam sua cidade crescer e ficavam entusiasmados com “o progresso”.
<><>Na próxima postagem, continuo falando sobre isso. Acima foto colorida de um bonde na Oswald Aranha em Porto Alegre. Essa foto foi doada por José Luís Kieling Franco.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Continuação...



O gaiola voltou a andar, gingando nos trilhos como aquele rebolado que mais parecia o da mulher da Pharmacia Carvalho. Meio minuto depois comecei a achar a guria feia e voltei a olhar os reclames. Lá estava o homem com o bacalhau nas costas. Deus do céu! Que coisa mais horrorosa aquele óleo de fígado de bacalhau, chegava a embrulhar o estômago. Ao lado do bacalhau estava o vinho Reconstituido Silva Araújo. Mas que palavra mais feia aquela, reconstituinte. Que será que significava? Credo, pense cá com meus botões, como tem palavras esquisitas. Então me lembrei daquela vez em que o tio José trouxera garrafão de vinho doce e bebi uma caneca inteira. Além de ficar tonto e me esborrachar no chão, levei uma baita tunda do meu pai.
Quando o bonde fez a curva na Casa Guaspari e entrou no abrigo da Praça Quinze, o motorneiro avisou que o bonde gaiola voltaria para o fim da linha, no Gasômetro, e que a gente deveria fazer baldeação. Troquei de bonde e continuei minha viagem, com a cabeça no ar, contando os postes, até descer na parada do colégo. No dia seguinte os bondes foram recolhidos, e com eles, um pedaço da minha infância.

Acima foto da despedida dos bondes. Na próxima postagem analisarei o relato do senhor Clóvis Milton.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Histórias de bonde (parte II)

A história reproduzida aqui é de autoria de Clovis Milton Duval Wannmacher, natural de Porto Alegre e vencedor do concurso de relatos de histórias de bonde, realizado em 2002.

A última viagem de bonde

Desci a Rua Clara até a Rua da Parais e corri em direção à parada de bonde, o frio castigando as pernas por causa das calças curtas. Em seguida ouvi o rangido do bonde Gasômetro. Era um bonde Gaiola, cantando e dançando sobre os trilhos.
Tem lugar, vamos dar um passinho ao fundo do corredor, repetia o motorneiro. Não dei bola e sentei-me num banco lateral da frente, de onde podia bisbilhotar os outros passageiros. Para me distrair comecei a ler os reclames afixados no bonde. Lá estava o xarope Bromil, o amigo do peito. E eu, que tinha chiado no peito, fiquei a matutar se algum dia ainda consideraria o Bromil tão amigo quanto o Heron, meu colega da quarta-série e filho de um cobrador de bonde. Aquele sim, era meu amigo do peito. A gente matraqueava até nas aulas de religião. Também, quem poderia agüentar quieto o padre Horácio, mais xarope do que o tal de Bromil
O bonde parou em frente à Pharmacia Carvalho. Na fachada havia reclame da Tomada São Lázaro, um santo remédio. Mas como é que um remédio podia ser santo? Só que o São Lázaro fazia tomada, e o padre Horácio benzia as latinhas. Vi de relance a mulher da Pharmacia Carvalho, bem bonita, apesar de já ter mais de 20 anos.
Continuei lendo os reclames. Contra dores, queimaduras, torcicolos, torceduras, reumatismos, contusões, um remédio eu já usei e pronto alívio encontrei, com Pronto Alívio Radway. Meu Deus, pensei, o que seria o Radway? Não tinha a mínima idéia, mas me lembrei de que na Rádio Farroupilha eles cantavam “raduei” e tudo ritmava direitinho. Quando eu me queimei aquela noite com aquela busca-pé na noite de São João, o doutor passou o tal remédio na minha queimadura, e eu senti um friozinho gostoso que aliviou a dor. Só não aliviou a dor dos cascudos que a vovó me aplicou, dizendo que era bem feito. O gaiola parou, esperando a passagem de outro bonde pelos trilhos da frente. Uma guria da minha idade sentou-se à minha frente. Grudei nela e fiquei um baita tempo secando, só para ver se ela me dava bola (...) Continua na próxima postagem.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Vigotsky


<><> Já escrevi sobre Piaget aqui. Ele e Vigotsky não chegaram a conviver, mas foram contemporâneos. O primeiro nasceu na Suíça, o segundo, na Rússia. Nos dois há pontos em comum, tanto a data de nascimento, 1896, como a preocupação com o estudo do desenvolvimento e aprendizagem. No entanto, enquanto o suíço entendia a psicologia cognitiva do indivíduo para o coletivo, o russo compreendia o processo de maneira inversa. Os dois não chegaram a se encontrar, mas Vigostky teve contato com alguns textos de Piaget.
<><>Segundo o psicanalista russo, todo conhecimento é socialmente construído e depende da relação estabelecida entre o indivíduo e seu mundo sócio-cultural. O papel da linguagem e da aprendizagem em grupo, nessa relação, é fundamental. Para Vigotsky, existem as funções psicológicas elementares, que são os impulsos naturais (como dor, fome, etc) e as funções psicológicas superiores, que exigem da criança certo grau de reflexão. Para o desenvolvimento das últimas, é fundamental o papel do mediador, que pode ser o pai, a mãe ou o professor.
<><>Eu concordo com o Vigostky. Acredito que as capacidades cognitivas são estimuladas através do meio no qual as crianças estão inseridas. Pelo menos, é o que tenho observado nas crianças com quem tenho contato. A relação dos pequenos com a realidade exterior é mediada por um adulto (ou outro ser) que transmite desde os nomes dos objetos até valores morais e culturais. É claro que nesta interação não existe uma mera repetição, antes cada informação é retrabalhada internamente pelo indivíduo.
<><>Nas visitas do Memória é possível perceber níveis diferentes de aprendizagem e conhecimento em crianças da mesma faixa etária. Isso porque a estimulação do meio é diferenciada, assim como a maneira como o conhecimento é visto. Por exemplo, consigo perceber que quando as crianças já estão trabalhando sobre o transporte ou visitaram o blog ou o Museu Virtual, o conhecimento flui muito mais. É claro que sempre é possível construir aprendizagem, mas quando há um conhecimento prévio ou as habilidades já são trabalhadas, o resultado costuma ser melhor.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Fichas de Porto Alegre


<><>Em Porto Alegre, desde o ano passado, foi implantado o Tri. O Sistema Integrado de Transporte, também chamado de bilhetagem eletrônica, tem como objetivo facilitar o fluxo nos coletivos. Com um cartão na mão, os usuários não precisam se preocupar com fichas e moedas. Nós, da Carris, temos o cartão Tri de rodoviário e eu o utilizo junto com meu crachá da empresa. Ele é um das coisas que as crianças mais percebem num primeiro contato. Para quem utiliza este sistema torna-se distante o tempo das fichas e bilhetes. Nada como relembrarmos, portanto.
<><>No Memória existe um expositor com vários tipos de tickets usados por bondes e ônibus ao longo da história da Carris. Há várias passagens de papel (para espanto das crianças) e uma tradicional dos elétricos, de metal, com um aspecto que lembra a roda de um bonde. Todos esses já foram vales - transporte em um certo período na Capital. No caso dos de papel, vinham em bloquinho ou em rolinhos e eram destacados de acordo com a necessidade. Muitos me perguntam espantados como se fazia em dias de chuva ou se molhassem. Respondo que se deixava secar ou perdia-se, ficando-se com o prejuízo.
<><>Antes da década de 80 cada empresa tinha os seus vales e as tarifas eram diferentes, de acordo com o trajeto percorrido. Assim, é comum encontrar, em nossas passagens, na identificação, o nome da empresa. Fico imaginando como era num dia atípico em que o usuário necessitasse pegar um ônibus diferente dos tradicionais. Bem, a necessidade é a mãe das invenções.
<><>As últimas fichas de Porto Alegre são de plástico, as integrais são verdes e as de estudante são rosa. Geralmente se comprava de saquinho, contendo 50 ou 75 vales. Por ser muito utilizadas, as passagens também eram “moeda corrente”, podendo ser trocadas por sorvete, chocolate ou qualquer outra guloseima. O interessante é que está prática é histórica. Nos primeiros bondes que transitaram no Brasil, as passagens eram aceitas como moeda de troca por mercadorias em diversos estabelecimentos. Já escrevi sobre isto aqui. A história não se repete, mas acontece de forma bastante análoga, podemos afirmar.