quinta-feira, 23 de abril de 2009

Noel Rosa - Um encontro do samba com o cotidiano


Para continuarmos no clima da nossa última postagem, na qual a música brasileira encontra os bondes que compuseram a paisagem urbana durante muitos anos, falemos de Noel Rosa. Sambista, boêmio, artista da música popular brasileira, Noel destacou-se na década de 1920 e 1930 sob o importante papel de representar em suas composições as significativas transformações desse período, tendo como foco a cidade do Rio de Janeiro.
A profusão do rádio e da indústria fonográfica, bem como a instabilidade política dos fatores que culminaram na Revolução de 30 compunham um cenário de constantes mudanças que estiveram presente na música. As ideologias dos grupos sociais, marginalizados pelo advento da modernidade e do progresso, assim como seus receios e angústias referentes ao futuro manifestavam-se na produção artística, sendo o samba um elemento de destaque entre as expressões populares. Nesse contexto, Noel Rosa ocupa um papel de destaque em suscitar nas suas letras desde o cotidiano prosaico, a diversidade sociocultural e as mazelas sociais.
Como não poderia deixar de ser, os bondes e suas figuras representativas - tais como o condutor e o motorneiro – configuraram os sambas desse compositor, nascido em Vila Isabel/RJ, tendo ficado conhecido como o “Poeta da Vila”. Hoje, ao escutarmos as músicas desse grande sambista, é oportunizada a vivência de um sentimento nostálgico sob as transformações que ocorreram na paisagem urbana do nosso país. Para além da beleza dos acordes musicais, através das canções de Noel, os mais jovens evidenciam os traços de um passado longínquo, ao passo que para aqueles mais experientes, essas músicas propiciam a rememoração de um tempo vivido. A importância da manutenção dessas memórias permite a consolidação do nosso patrimônio histórico cultural imaterial– numa próxima postagem abordarei esse conceito com maior profundidade.
São Coisas Nossas
(Noel Rosa)
"Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça
Coisa nossa, coisa nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Malandro que não bebe,
Que não come,
Que não abandona o samba
Pois o samba mata a fome,
Morena bem bonita lá da roça,
Coisa nossa, coisa nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Baleiro, jornaleiro
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e o vigarista
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Menina que namora
Na esquina e no portão
Rapaz casado com dez filhos, sem tostão,
Se o pai descobre o truque dá uma coça
Coisa nossa, muito nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!"

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Resgate de Memórias


Ontem, ao chegar na Carris e avistar, sobre o teclado do computador, a chamada da matéria “Talento e Memória em Musical” no Expediente do jornal Zero Hora fez com que meu dia ganhasse um colorido especial. A reportagem descreve a última gravação das cenas que irão compor um longa-metragem sobre a história do músico Octávio Dutra. Compositor gaúcho que gravou no Rio de Janeiro, assim como outros virtuoses do cenário musical do período, mas que consolidou sua música em Porto Alegre. O resgate da história desse ícone representa a presença do Estado em meio à efervescência da cultura nacional no início do século XX.

As primeiras décadas dos novecentos foram traçadas por grandes transformações decorrentes de um processo de mudanças com a instauração da República no final do século XIX, entre outros fatores. Acompanhando o cenário nacional Porto Alegre, nesse período, é marcada por grandes alterações na sua paisagem urbana. Esses eventos diversificaram as atividades produtivas, sociais e culturais da cidade gerando novas necessidades. Nesse contexto, no qual se intensificou a necessidade de comunicação, surgem os primeiro bondes na capital. O bonde à tração animal e, logo após, a eletricidade simbolizando a modernização. Entre composições de diferentes gêneros musicais, tais como choros, polcas, sambas e valsas, Octávio Dutra, há 90 anos, sentiu-se inspirado a compor dentro de um Elétrico da Carris (veja um vídeo realizado pela equipe de comunicação da empresa aqui). Sua composição ficou conhecida como: “Em um bonde”, ou “Choro composto em um bonde”. O que provavelmente, com a corrida diária que estabelecemos com o relógio, dificilmente aconteceria dentro de um transporte urbano em pleno funcionamento. O bonde compôs junto com a música de Octávio a representação da cultura urbana da nossa cidade.

A produção de um filme relatando episódios desse personagem da história da música nos propiciará viver ou, então, reviver a Porto Alegre de décadas atrás. Confesso ser uma apaixonada pela música popular brasileira – declaração que não apresenta nenhuma novidade para os que me conhecem - e fico feliz em perceber que compartilho desse sentimento com as diferentes gerações. A foto que estampa a reportagem do Zero Hora,assim como ilustra essa postagem – realizada no set de gravação montado em um pitoresco bar do centro – demonstra esse gosto compartilhado. A cena é dividida por dois excelentes músicos gaúchos da atualidade, Yamandu Costa e Pedro Franco. O primeiro já ganhou o público além das barreiras continentais e o segundo – um jovem de 17 anos – inicia sua carreira abrilhantando as rodas de músicos em Porto Alegre. Tais eventos são mais uma demonstração de que a música perpassa as fronteiras temporais.

Projetos assim denotam a importância da materialização de memórias do cotidiano urbano para a nossa identidade cultural. Imagens, partituras, relatos são conjuntos, dos quais criam-se discursos, que viabilizam as desconstruções hegemônicas quanto os espaços geográficos da formação da música popular brasileira. Essas iniciativas rememoram fatos – embora na ocasião não tenhamos essa consciência – que simbolizam as nossas características sócioculturais. Parabéns a todos que se preocupam com a conservação desses momentos que marcaram a boemia porto-alegrense!