segunda-feira, 26 de março de 2018

Dupla Viagem

     O transporte público está no cotidiano das pessoas. A maioria de nós utiliza ou já utilizou bondes, ônibus ou lotações para a realização de suas atividades diárias. Com 145 anos de existência, a Cia. Carris está presente no dia-dia de porto alegrenses das mais diversas gerações. Esta presença diária, gera muitas histórias e lembranças que são transportadas pelos usuários dos veículos da Carris. Alguns destes usuários têm a sensibilidade necessária para enxergar o cotidiano com olhos de poesia, este é o caso do escritor Charles Kiefer, morador de Porto Alegre e autor do texto "Dupla Viagem". 
   Encontramos o texto citado num trabalho de reorganização de documentos da Cia. Carris (que como nossos amigos podem imaginar, é um trabalho que não termina nunca!). Iremos reescrever o texto e convidamos os nossos amigos a pensarem sobre suas próprias viagens de ônibus e se também "viajam" duas vezes no transporte coletivo: 

"Sempre que ando de ônibus faço duas viagens: uma, em direção ao meu destino geográfico, seja o Mercado Público, o bairro São Geraldo, ou a Azenha; e outra, em direção ao tempo, aos espaços indefinidos da memória e dos sonhos. Sempre que posso, deixo o carro na garagem, por que a minha alma não quer a concentração neurótica do motorista solitário, minha alma tem necessidade de janelas e de ócio, minha alma quer viajar além da Farrapos, da Mauá, da Ipiranga. Por ruas e avenidas congestionadas, elaboro enredos e personagens. Imagino, por exemplo, uma história que principiasse assim: 
'Tudo começou em uma noite qualquer de 1872, ano em que os bondes da Carris começaram a circular. Desde o dia anterior, um denso nevoeiro descerá sobre a cidade.Saí de casa com a sensação de que algo especial, definitivo  me esperava. Na medida que caminhava, sentia o nariz como que chocando-se com uma substância fria e gelatinosa. Em poucos minutos, estava com o cabelo e a barba molhados. Resolvi tomar o bonde. O motorneiro, um velho asmático e corcunda, já me conhecia. Indiferente a sua saudação, sentei-me bem ao fundo, de onde pudesse controlar tudo. Os dedos da minha mão acariciavam a pistola de dois canos no bolso do casaco. Fechei os olhos por algum instante e fiquei a ouvir os estalidos secos das rodas nos trilhos...'
 Não sei como há de prossegui a história, sequer sei quem é este passageiro que atravessa Porto Alegre numa noite qualquer do século passado. O que sei é que se eu quiser continua-lá, terei de andar muito de ônibus. Mas o melhor mesmo seria viajar num daqueles bondes amarelos, vagarosos e tilintantes que há 125 anos encheram Porto Alegre de emoção e espanto!"